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MARGENS CLÍNICAS

Rafael Alves Lima

Pedro Obliziner

Anna Turriani

Reparação coletiva à violência de Estado

Quando somos convocados a pensar na psicanálise e os espaços públicos, somos relançados nas origens do coletivo Margens Clínicas e o propósito inicial de oferecer atendimento psíquico gratuito à afetados pela violência da polícia, de modo a poder construir insumos que pautem o Estado em sua responsabilidade de reparar os danos que causa à sociedade, sobretudo preta, pobre e periférica. Ao longo de nossa trajetória, dois  compromissos foram se firmando como parte integrante de atuação: tornar mais acessível a psicanálise para aqueles que a procuram como forma de tratamento; tornar acessível para aqueles que desejam uma formação em psicanálise, tanto como auxílio nas práticas que já exercem, quanto como opção profissional.
 

Desde nosso surgimento em 2012, buscamos compreender a violência de Estado desde sua complexidade, analisando as interseccionalidades da violência, e buscando analisar as especificidades da violência de Estado em período democrático, mas também sua relação direta com o período ditatorial brasileiro, assim como seu passado escravocrata. Assim que, quando fomos selecionados para ser uma das equipes a executar o projeto Clínicas do Testemunho, da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em 2015 - projeto de promoção de memória e reparação psíquica às vítimas da ditadura - continuamos esse movimento na proposta de perguntar: quem é afetado pela ditadura?

 

Como foi a ditadura na quebrada?
 

Durante uma das últimas atividades que realizamos em 2017, um participante se assustou ao descobrir que o número oficial de mortos e desaparecidos por ações da ditadura militar era de apenas 434. Este número diz respeito aos mortos e desaparecidos registrados oficialmente entre 18 de Setembro de 1946 a 5 de Outubro de 1988 (BRASIL, 2014) e se referem a mortes por execuções sumárias, tortura, em conflitos armados, suicídios na iminência de prisão ou tortura e desaparecimentos resultantes de privações de liberdade por agentes do Estado naquele período. 

 

Ao final do projeto, no qual realizamos atendimentos individuais, grupos de testemunho, oficinas de boneco como dispositivo de fala, trabalho nos territórios de Perus e Heliópolis, muitas dessas atividades nos mostraram que há todo um universo de pessoas que sofreram, e sofrem, com a violência de Estado, que fica fora dessa categorização e dos dados oficiais. Importante deixar claro que expandir o que entendemos por “violência de Estado” para incluir esses sofrimentos que ainda não são reconhecidos como associados, por exemplo, aos efeitos da ditadura militar em nada significa relativizar ou diminuir a importância daqueles que foram mortos, desapareceram, foram presos, torturados e exilados, conforme os dados oficiais. Pelo contrário, é um objetivo desta primeira parte do texto defender a importância de um trabalho clínico que reconecte sofrimentos que são percebidos como independentes, o que remete à noção de comum que ressoou diversas vezes nas falas deste colóquio sobre a psicanálise nos espaços públicos.
 

Abordaremos alguns elementos do trabalho realizado no bairro de Perus, na região noroeste de São Paulo, para apresentar tanto algumas dificuldades, quanto alguns ganhos das ações que desenvolvemos. Chegamos em Perus por saber que no cemitério do bairro foi encontrada a vala clandestina com vítimas da ditadura. O trabalho lá envolveu uma cuidadosa e dedicada articulação com referências e moradores que pode ser melhor compreendida no livro recém lançado do projeto (Siqueira et al., 2017), mas que aponta para um elemento importante, o abandono da posição mais tradicional aos psicanalistas, a de se mostrar disponível enquanto aguarda que venham até ele, por conta da necessidade de se apresentar a pessoas que não nos chamaram e sobre as quais não sabíamos se estavam interessadas no que tínhamos a oferecer, o que sempre pede cautela. Esta situação, por exemplo, é similar à enfrentada pela equipe da Clínica de Cuidado em Altamira, também relatada neste livro. 

 

Uma diferença com Altamira, contudo, é que se lá, ao chegar a equipe da Clínica de Cuidado, as pessoas reconheciam facilmente os efeitos de Belo Monte (“seu João não levanta mais da cama”, “dona Maria teve um AVC”) e eram capazes de apontar quem precisava desta atenção, perguntar em Perus por pessoas afetadas pela ditadura não surtia o mesmo efeito, parecia quase não fazer sentido, e, caso tivéssemos recorrido a essa estratégia, provavelmente atenderíamos só duas ou três pessoas. Então, como realizar um trabalho do Clínicas do Testemunho com pessoas que não se reconheciam como afetadas pela ditadura?
 

Esta característica pedia um certo recuo, resolvemos fazer um grupo de memória do bairro, aberto a qualquer pessoa que desejasse comparecer, sem citar a princípio o tema da ditadura. Descobrimos, ali, duas coisas importantes: 

 

1) a vala com as ossadas de mortos e desaparecidos na década de 70 não aparecia como um fator tão relevante, ou seja, ao invés dos moradores nos contarem histórias sobre a vala, era mais frequente que ouvíssemos perguntas curiosas;

 

2) a origem do bairro estava ligada a uma fábrica de cimento e os trabalhadores dela fizeram a maior greve do mundo durante a ditadura (1962-69)!
 

A fábrica e a greve eram o que faziam laço, permitiam organizar a história do bairro. Durante os primeiros meses de greve, houve um cisma entre os grevistas quando uma boa parte resolveu retomar o trabalhar, os chamados pelegos, enquanto que os queixadas mantiveram a greve durante os 7 anos. Este cisma marcou as relações de vizinhança, ainda hoje, todos sabem quem é filho ou neto de queixada ou pelego. Por outro lado, a vala não aparecia, ficava ausente nas histórias ou ocupava uma posição alheia, mesmo que pertencente ao bairro. Estas duas características nos fizeram acreditar que o trabalho em Perus não poderia negligenciar nenhuma delas.
 

Aproveitamos, então, a curiosidade sobre a história da vala clandestina para propor uma Conversa Pública sobre o tema. Aqui cabe falar um pouco mais deste dispositivo. As Conversas Públicas são o dispositivo carro chefe dos projetos Clínicas do Testemunho e compreendem uma atividade coletiva de testemunhar, de falar sobre sua história. Consideramos esse dispositivo fundamental para o enquadre de nosso projeto, uma vez que também possibilita que pessoas que não se reconhecem como afetadas ou necessitadas de um tratamento participem de um espaço clínico. Ele ocorria sempre em espaços de ocupação pública (biblioteca, CEU, ocupações sedes de coletivos do bairro), com disposição horizontal, onde a fala de nenhum dos participantes é mais relevante do que a dos outros presentes, além da usualmente resultar em uma diversidade muito grande de pessoas, possibilitando encontros de três gerações, atividades profissionais variadas etc.
 

Também tomamos as Conversas Públicas como um dispositivo de pesquisa coletiva, no qual colocamos a questão “Perus foi afetado pela ditadura?” e acompanhamos as respostas que aquelas pessoas iam formulando. Na conversa pública sobre a vala clandestina, tivemos o encontro de pessoas que estiveram ligadas a descoberta e denúncia da vala, profissionais do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF-UNIFESP) que realizam o trabalho atual de identificação das ossadas com moradores “comuns” do bairro. 

 

Uma cena desta Conversa Pública ilustra bem o caráter desses encontros, após uma longa fala do ex-administrador do cemitério, sujeito que descobriu a vala clandestina, um protagonista daquela história, quebramos a postura mais passiva dos outros participantes, quase como espectadores, perguntando o que lembravam do dia que a notícia da vala veio a tona. Então, surgem diversas versões, uma moradora diz que não ficou surpresa, que era claro que algo acontecia no cemitério já que, vez ou outra, carros pretos bloqueavam a rua. Outra moradora, entretanto, diz que não suspeitava de nada, outro resolve fazer uma relação com a violência policial dos dias de hoje e assim por diante. Este momento parece estabelecer bem a proposta daquele evento, mostra que se a fala do ex-administrador do cemitério era muito importante, também era de todos os outros, que estávamos interessados na memória do bairro, mas que ela fosse uma memória coletiva.
 

Para aqueles que a desconhecem, a vala era clandestina porque constava em terreno irregular, sem registros e continha mais de mil ossadas. Voltamos ao número de 434 vítimas oficiais da ditadura, essas mil ossadas todas foram execuções de agentes da ditadura? Não e sim, para se ter um parâmetro, hoje o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense tenta identificar 41 pessoas que podem estar entre essas mais de mil ossadas, e os outros? Pessoas executadas por esquadrões da morte, indigentes e inclusive muitas crianças e jovens que morreram por um surto de meningite que o governo tentava “maquiar” a dimensão ocultando, assim, parte do número de mortes. Tudo isso, especialmente este último grupo, deixa a pergunta: será que uma pessoa que é apagada do registro porque o governo não quer admitir sua responsabilidade em sua morte não é uma vítima da violência de Estado e da ditadura? Isto permite fazer a passagem para o segundo eixo do nosso trabalho no bairro, a história da fábrica de cimento.
 

Fomos descobrindo informações interessantes, a gênese do bairro está ligada à criação desta fábrica, de tal forma que a infraestrutura do bairro sempre foi pautada por ela, seja na chegada da linha do trem, da energia elétrica etc. O dono da fábrica ocupava uma posição ambivalente: ao mesmo tempo que provia o povo com trabalho, energia, castigava-o severamente quando era contrariado. Era comum de cortes da energia elétrica na vila dos operários, por exemplo.
 

Muitas das histórias que surgiam nas Conversas Públicas sobre a fábrica de cimento diziam de uma violência tão quotidiana a diversos brasileiros que muitas vezes surge naturalizada, de difícil conexão com uma ideia de violência de Estado, por exemplo. Porém, estas histórias demonstravam diversos sinais de algo que conhecemos bem, o conluio do Estado brasileiro com o capital e a iniciativa privada, relação que perdura até hoje e que tem, como um dos casos mais recentes, Belo Monte. A fábrica não tinha qualquer preocupação com os moradores, as chaminés não tinham filtros e o bairro era coberto por nuvens de fumaça, as casas mais antigas da região têm as telhas de sua cobertura petrificadas pela calcificação do pó de cimento sobre elas; o único médico do bairro era funcionário da fábrica; a polícia fazia comboios para recrutar trabalhadores “dispostos” a furar a greve.
 

Tivemos momentos preciosos que expunham bem os efeitos disso, como o testemunho de uma mulher cujo pai se feriu trabalhando na fábrica pouco antes da greve e, assim que a greve estourou, foi-lhe negado tratamento médico e ele veio falecer. Diversas outras cenas de um bairro dividido, situações de agressões e preconceito entre os dois grupos de pelegos e queixadas.
 

Retornamos a um ponto crucial da conversa pública, a de que este dispositivo permite que alguém que não se reconhece como afetado pela ditadura possa participar de um trabalho clínico, mas cabe aqui uma reconfiguração. Num processo analítico há, a grosso modo, uma pessoa que fala e a outra que escuta. Mesmo pelo senso comum, se indagarmos onde está a parte mais relevante deste processo, a resposta seria que a maior transformação ocorre naquela pessoa que fala. A “cura pela fala”, afinal. No testemunho público, a balança começa a pesar para o outro lado, seja por um fator quantitativo, uma pessoa falando enquanto 30, 50 ou 60 escutam, como chegamos a ter. Mas também por um fator qualitativo.
 

Há muitas formas de pensar o testemunho pela psicanálise, mas uma que nos é útil aqui é o testemunho enquanto ato que suspende algo, um engano, o mito individual que nos faz acreditar que nosso sofrimento é independente daqueles que nos cercam. Esse momento de transmissão de uma não-identidade que possibilita que ao escutar a história de alguém eu pense que aquela história também é minha e que posso me responsabilizar por ela. 
 

Falando em responsabilidade e psicanálise, uma das propostas deste evento é pensar qual a nossa responsabilidade em tudo isso. A associação mais fácil talvez seja a própria chamada desse colóquio que aponta uma omissão, o psicanalista que não consegue alcançar a subjetividade de sua época que abdique de sua prática. Uma outra associação poderia ser quanto aos momentos nos quais a psicanálise no Brasil não cumpriu a promessa de ser uma “peste” e sim de reforçadora de um quadro de hegemonias bem estabelecidas. Mas, gostaríamos de propor algo em um nível muito mais elementar, como querer que a psicanálise não atue desta forma e acolha a diversidade enquanto ainda é tão difícil que pobres, negros, indígenas, entre outros, se tornem analistas caso assim o desejarem?

 

A formação nas margens

“É possível prever que, mais cedo ou mais tarde, a consciência da sociedade despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente tanto direito a uma assistência à sua mente, quando o tem, agora, à ajuda oferecida pela cirurgia, e de que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos do que a tuberculose, de que, como esta, também não podem ser deixadas aos cuidados impotentes de membros individuais da comunidade. Quando isto acontecer, haverá instituições ou clínicas de pacientes externos, para as quais serão designados médicos analiticamente preparados, de modo que homens que de outra forma cederiam à bebida, mulheres que praticamente sucumbiriam ao seu fardo de privações, crianças para as quais não existe escolha a não ser o embrutecimento ou a neurose, possam tornar-se capazes, pela análise, de resistência e de trabalho eficiente. Tais tratamentos serão gratuitos. Pode ser que passe um longo tempo antes que o Estado chegue a compreender como são urgentes esses deveres. As condições atuais podem retardar ainda mais esse evento.” (FREUD, 1919/2010)

Coincidência ou não, estamos neste evento sobre “Psicanálise nos Espaços Públicos” reunidos há exatos cem anos de quando Freud lança esta afirmação na famosa conferência de Budapeste em 1918, publicada um ano depois. Salta aos olhos a atualidade do projeto freudiano, esboçado ao fim da Primeira Guerra Mundial e desenvolvido nos anos seguintes nas Policlínicas - que, também salta aos olhos, se multiplicaram muito rapidamente, totalizando 12 em 10 cidades e 7 países diferentes no entreguerras. É comum que recorramos ao modelo destas policlínicas - especialmente a de Berlim - para recuperarmos a história de nossas práticas clínicas, seja para nos defendermos de acusações irresponsáveis e de má fé como a de que estaríamos “reinventando a pólvora”, seja para efetivamente fortalecermos o lastro histórico dos projetos em que estamos envolvidos. 

 

Para dar um exemplo, quando tomamos conhecimento de que Max Eitingon defendia a análise gratuita pelas mesmas razões que constatava que “não se pode fazer uma análise com a barriga vazia”, ou ainda, quando ele replica a experiência da Policlínica de Berlim no Instituto Psicanalítico de Jerusalém, a partir do fim dos anos 30, atendendo pacientes que se sentavam em caixas de laranja (LIEBERMANN, 2012), damos como certo de que somos herdeiros destas experiências, sem que saibamos exatamente como. Afinal, parece óbvio que tal herança está muito além da questão da gratuidade dos tratamentos.

Hoje aqui quero tratar de outro tópico frequentemente reputado às experiências das policlínicas mas muito raramente incorporado às nossas reflexões, que é o tópico referente à questão da responsabilidade pela formação dos analistas.

Na experiência mais recente do Margens Clínicas, por conta do projeto das Clínicas do Testemunho que desenvolvemos até o mês passado, tivemos a oportunidade de desenvolver uma espécie de laboratório de experiências formativas e formadoras em psicanálise de maneira absolutamente múltipla dentro do Centro de Estudos em Reparação Psíquica (CERP-SP). Realizamos também cursos com profissionais do SUS e do SUAS, com atividades de supervisão, em meio a uma série de iniciativas desenvolvidas em Perus e em Heliópolis. 

 

Dessas nossas experiências e iniciativas de ensino e de transmissão a que denominamos “DesFormação Marginal” (e notem que foi preciso recorrer a um neologismo, “DesFormação”, para nomearmos o que queríamos), tomamos como certo que o sucateamento e as condições precárias a que são submetidos assistentes sociais e profissionais da saúde (psicólogos, enfermeiros e outros) em seus trabalhos dificultam severamente a possibilidade da escuta nestes espaços. Não obstante, tenho dúvidas se mesmo assim ela, a escuta psicanalítica, não opera - mesmo com todas as dificuldades, ou apesar delas.

Não é verdade que não há interesse destes profissionais pela psicanálise. Arriscaria dizer que a maior parte faz análise pessoal, alguns passam por supervisões psicanalíticas inclusive dentro de seus serviços, alguns fazem formação institucional mesmo não atuando em consultório (fazer 40h semanais mais deslocamentos e afins na cidade cinza em geral cobra seu preço), alguns se esforçam para ler e estudar dentro das condições que tem. 

 

Nessa pluralidade, pergunto: em que reside a dificuldade de reconhecer o que há de formação no trabalho psicanalítico desenvolvido por estes profissionais que atuam na ponta da violência de Estado? São muitos fatores, muito complexos, mas um que pudemos detectar nas nossas experiências de “desformação” é uma espécie de desautorização antecipada, como se “não houvesse psicanálise possível” no discurso daqueles que atuam em hospitais públicos ou nos serviços de assistência. 

 

Uma das sombras que se colocam por cima da desautorização antecipada é o argumento da “verdadeira psicanálise”, como se as experiências de análise pessoal destes profissionais por exemplo estivesse descolada do trabalho que desenvolvem, ou que os textos que eles lêem fossem muito úteis e interessantes para trabalhos que acontecem em “condições normais de temperatura e pressão”, para não dizer daqueles que acham que psicanálise de verdade acontece mesmo é em outra galáxia. Por que é preciso que estes profissionais acreditem neste abismo entre um e outro? É preciso dizer que em nome da “verdadeira psicanálise” provavelmente se esconde a intencionalidade mais conservadora das estratégias de formação dos analistas, evitando a possibilidade de horizontalidade dos processos de transmissão da psicanálise. 

 

Defender a horizontalidade da transmissão é responder à velha crítica de que “a psicanálise é burguesa, classista”: será que a psicanálise que é burguesa ou estamos falando do meio psicanalítico, da comunidade psicanalítica, com seus dispositivos de formação, que mantém muitos interesses em permanecer burguês e classista em favor de uma reserva de mercado? Imagino que só o fato de estarmos reunidos em um encontro sobre “Psicanálise nos Espaços Públicos” já indica que concordamos de partida em um elemento: existe um problema gigantesco aqui. Insisto em um aspecto fundamental: muitos destes profissionais que atuam na ponta não estão interessados em “se tornar psicanalistas” no sentido tradicional-conservador da coisa. No fundo, constatamos que eles se importam muito menos (mas muito menos mesmo!) com isso do que aqueles que se auto declaram “verdadeiros psicanalistas”. 

 

Estamos certos de que nas iniciativas como as nossas não é difícil começar: difícil é sustentar, e sustentar autenticamente uma práxis, como gostava de dizer Lacan (1958/1998). Pois bem. Se nós não contarmos com aqueles que estão na ponta, e se nós também não nos colocarmos em posição de que eles podem contar conosco, como sustentar nossas iniciativas? Nestes mais de seis anos de Margens Clínicas, erramos e acertamos, fomos às vezes duramente criticados, mas também fomos elogiados, às vezes com razão, às vezes sem razão...e seguir de pé tem sido um esforço. Erramos quando achamos que teríamos mais perna do que de fato tínhamos; parodiando Jean Cocteau: “não sabendo que era impossível, ele foi lá e...quebrou a cara, não conseguiu fazer, pelo simples fato de que tem coisa que é impossível mesmo”. Reconhecer o tamanho das nossas pernas é fundamental, bancar é um esforço, mas que precisa não ser um sacrifício. Não é a duração no tempo cronológico que opera enquanto crivo para avaliarmos a nossa práxis, mas, insisto, com Lacan, que a autenticidade de nossa práxis que a torna sustentável (LACAN, 1958/1998).

Por exemplo, no Margens Clínicas, somos frequentemente perguntados - e dou toda razão a quem pergunta - a respeito da presença da psicanálise nos territórios periféricos. “A psicanálise não chega à periferia”? Em parte é verdade, e nós estamos aqui reunidos para encararmos isso. É preciso sim, claro, que inventemos dispositivos de atendimentos de praça pública, de centros culturais, de iniciativas como as que aqui se reúnem. Mas não nos apaixonemos demais por nós mesmos. Já foi dito antes aqui: há sim psicanálise em espaços públicos, nos CAPS e nos CREAS, nos hospitais públicos e nas assistências. E nunca é demais sublinhar: sempre houve psicanálise nestes espaços públicos, sempre houve psicanálise na ponta, no território. Estes profissionais sempre estiveram lá, em condições precárias de trabalho, esmagados pelo sistema, mas resistindo com muita valentia aos desmontes que só aumentam a cada ano que passa. Não ignoremos o Estado. 

 

Aliás, um parêntese: se por um lado é verdade que a psicanálise e o Estado mantenham uma desejável distância estratégica entre si em favor da não regulação das modalidades de formação dos analistas, por outro não é verdade que tal relação entre psicanálise e Estado não exista por meios, digamos, excêntricos. Desde a implantação do freudismo nos anos 10 e 20 no Brasil pela psiquiatria que atuava nos hospitais públicos da época - não nos esqueçamos, muitos higienistas e até eugenistas, a despeito da posição do próprio Freud a respeito (CASTRO, 2015), passando pelos anos JK, em que tivemos um psicanalista como Ministro da Saúde (Mauricio de Medeiros), cujo ministério distribuiu bolsas para os analistas em formação fossem à Europa para realizarem suas análises didáticas (SÉRIO, 1998), passando pelo boom da psicanálise nos anos de chumbo - alguns devem lembrar do caso Amílcar Lobo, que não é mero acaso nesta história mal contada da psicanálise dentro do Estado brasileiro (ALVES LIMA, 2017) até as iniciativas de reparação psíquica contra a violência de Estado, como foi a Clínica do Testemunho recentemente. 

 

Ou seja, se com as Clínicas do Testemunho a relação entre psicanálise e Estado pôde ser outra que não a do higienismo, do racismo científico, do uso do recurso público em favor de finalidades privadas, não podemos no entanto ignorar que nosso passado de relações com o Estado antes disso sempre foi muito problemático e, quando falamos da violência de Estado hoje, passa a ser, para dizer o mínimo, paradoxal.

 

Dito isso, reitero: não ignoremos as políticas públicas de Estado, ou pelo menos não ignoremos aquelas que não nos ignoram. Que nossas iniciativas que partam particulares se dêem no espaço público, mas não em detrimento do SUS e do SUAS. Que possamos estabelecer parcerias com seus profissionais, que possamos ocupar estes postos, que reforcemos a importância de ocupar estes postos desde as nossas graduações, que disponibilizemos estágios nestas instituições e ensinemos sua história, e que finalmente possamos nos dispor a estabelecer também dispositivos de formação de escuta, de estudo e de transmissão para além dos inquestionavelmente fundamentais atendimentos gratuitos à população. Que enfim possamos reconhecer nossos colegas que fazem a tal “psicanálise que dá pra fazer”, como muitos deles tristemente o dizem, enquanto nossos pares, enquanto tão psicanálise como o que nós fazemos. Eles querem essa conversa conosco, e esse reconhecimento é fundamental. Por que colocar este reconhecimento em questão parece levar à divisão entre o que é psicanálise e o que não é? 

 

Tenho uma primeira hipótese. A oferta do tratamento psicanalítico a quem não tinha dinheiro sempre existiu na história, de forma errante e assistemática, possível a iniciativas individuais e de pequenos grupos e dificilmente mantidas por muito tempo - desde a clínica pessoal do próprio Freud inclusive (ROAZEN, 1999) e atravessando o legado das policlínicas mencionadas anteriormente. Não espanta em absoluto a ideia da flexibilização dos preços de sessões, e diria até que, longe de ser um tabu, a flexibilização dos valores tende ao consensual entre os analistas politicamente ou socialmente mais lúcidos. Com isso quero dizer que a clínica sendo também política abre-se cada vez mais para desmistificar o tema do dinheiro e do manejo do dinheiro na análise. 

 

No entanto, é preciso ir além para dar seguimento à relação entre psicanálise e espaço público, uma vez que a psicanálise nunca será verdadeiramente pública enquanto a análise não-paga-com-dinheiro permanecer inviabilizando o prosseguimento da formação. Dizendo em outras palavras e com todas as letras: o desafio é rastrear na história da psicanálise as situações em que o paciente pobre veio a se tornar psicanalista! Se tomarmos o tripé da formação (análise pessoal, supervisão e estudo teórico), e se tomarmos que de algum modo a análise pessoal seja o pé do tripé mais razoável (“mais fácil”) de se conseguir gratuitamente ou quase gratuitamente - nem precisamos pensar nas nossas clínicas nos espaços públicos, pensemos mesmo em iniciativas pessoais de analistas em seus consultórios particulares ou mesmo pelas chamadas “clínicas sociais” das instituições tradicionais de formação de psicanalistas...enfim, será que o gargalo social aperta mesmo na análise pessoal? Ou será que não é na supervisão, no estudo teórico, na abertura à horizontalidade da transmissão no sentido forte do termo, que o gargalo social aperta mais? Indo direto ao ponto, pergunto-lhes: será que a questão no fundo não é “e se os pobres vierem a se tornar psicanalistas?” Questão esta que toca sim na indisponibilidade dos analistas para tal, que é na verdade um grande vespeiro. 

 

Desde o crivo da filiação (o famoso “quem fez análise com quem”, também conhecido como pedigree do divã, para saber se na raiz da árvore genealógica a pessoa chega enfim no Freud), passando pela análise leiga (leiga não mais hoje de não médicos, mas de não o que?), até a oferta efetiva de supervisão e de cursos gratuitos ou comunitários de psicanálise a quem se dispuser a estar neles (cursos públicos de psicanálise, vamos chamar a coisa pelo nome, né)... bem, um vespeiro gigante, organizado em torno do que levantamos como primeiro ponto: a “verdadeira psicanálise”, que transborda das análises dos analistas e banha todo um expediente de deslegitimação e do que chamei de “desautorização antecipada” na mais fina flor do conservadorismo psicanalítico.

 

Eu gostaria de ter condições de sustentar uma segunda hipótese, mas quero ao menos anunciá-la: há uma associação histórica entre o inanalisado enquanto potência crítica, seja na sua vocação ou inclinação pública, seja no seu caráter indomesticável diante do “ideal de análise”, esta espécie de primo de segundo grau da “verdadeira psicanálise”. Vejam: é irrefutável há mais de um século a indispensabilidade da análise do analista, que conhecemos ao menos desde Ferenczi como a segunda regra fundamental da psicanálise. Não é isso que quero colocar em questão. Gosto de lembrar que a análise do analista Max Eitingon - aquele mesmo da Policlínica de Berlim que atendia sentado em caixas de laranja e dizia que “não se faz análise de barriga vazia” - foram algumas sessões peripatéticas com Freud em Viena. Vejam: o primeiro psicanalista a ocupar a função de supervisor na história da psicanálise fez suas poucas sessões de análise pessoal nas ruas caminhando com seu analista. Hanns Sachs, primeiro “analista didata” da Policlínica de Berlim, Karl Abraham, o venerável presidente da Sociedade Psicanalítica de Berlim, para pegar dois outros exemplos, não fizeram um dia sequer de análise pessoal, mas fizeram tudo o que fizeram como psicanalistas no espaço público (FALZEDER, 2015). Bem, sem mais me estender em exemplos, pergunto a vocês, primeiro: quem tem medo da potência do inanalisado? E segundo: tem coragem de mexer nesse vespeiro?

Finalizo esta fala propondo um encaminhamento. Para podermos seguramente superar as “desautorizações antecipadas” e derrubar esta série de idealizações que elenquei - “o ideal de análise”, “a verdadeira psicanálise” etc. - quero convocá-los a uma reflexão urgente, incontornável, em uma pergunta de cunho analítico: “qual é a sua parte nisso de que você se queixa?”. Olhe pra dentro e reflita no mais íntimo juízo do seu ser: será que não tem uma partezinha-sua-aí-dentro que acredita em “verdadeira psicanálise” ainda? Sempre haverá aquele tiozão conservador pra dar de dedo na sua cara e dizer: “mas isto não é psicanálise” - falávamos disso ontem né. Não sejamos ingênuos de achar que este “isto não é psicanálise”, este nosso Magritte piorado, está unicamente referido ao consultório privado. Há uma abstração que se depreende daí, uma imagem de “verdadeira psicanálise” em torno da qual orbitam subcategorias como “psicoterapia psicanalítica”, “psicoterapia de orientação psicanalítica” e, tantas vezes, “psicanálise em extensão” e co-variantes. Vamos continuar usando estas subcategorias pra pedir benção a quem?

 

A psicanálise só poderá ser verdadeiramente pública no momento em que seu dispositivo de formação de analistas se tornar verdadeiramente público. Para que aquele sujeito que não tem “condições materiais de pagar uma análise”, como se diz por aí, possa não apenas realizar sua análise pessoal, mas que possa também vir a se tornar psicanalista caso assim o deseje - caso nele seja “despertado” o célebre “desejo do analista”, se quisermos assim chamar. Aquele sujeito, qualquer sujeito, qualquer um: o imigrante, o refugiado, o negro, o pobre, o ribeirinho, o morador da periferia, a pessoa em situação de rua, o operário de Perus, o transexual, o índio...quando somos interpelados “por que tão poucos negros psicanalistas?”, por exemplo, deveríamos refinar a pergunta: “por mais que tenha sido possível ao negro realizar sua análise pessoal, por quais circunstâncias não foi a ele possível vir a se tornar psicanalista e ser reconhecido enquanto tal por seus pares?”. Então bem, se você se ouviu e não conseguiu evitar um “nossa, mas daí já é demais, não?”, bem, acho que o tiozão reaça que habita dentro de você despertou. Sugestão: não pede benção pro tiozão não, afinal nem você nem ninguém aqui nesta sala hoje deve qualquer coisa a ele. Apenas faça um favor: pergunte ao seu tiozão interior assim: “qual é a sua parte nisso de que eu, psicanalista no espaço público, me queixo?”

 

 

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