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A CLÍNICA COMO ANTEPARO À VIOLÊNCIA NOS CONTEXTOS DE USO DE DROGAS

Rodrigo Alencar

Em 1884 Freud publicou “sobre a coca”, um artigo que promovia a cocaína como panaceia para os males modernos. Ao decorrer dos anos seguintes, após uma descoberta de sucesso por um de seus colegas de trabalho, um fracasso clínico notório e algumas propagandas farmacêuticas com sua assinatura recomendando a novidade no mercado (Escohotado, 1995/2010). Sua notoriedade lhe rendeu a alcunha de Dr Coca, proferida em ato falho de um de seus supervisores no hospital.  

Freud encontrou críticos mordazes, de acordo com o historiador Antônio Escohotado (idem), seus detratores foram os primeiros acadêmicos a cunhar o termo droga de modo pejorativo. Eles não só se incomodaram com a postura de Freud, julgando-a irresponsável. Eles passaram a demandar ao Estado, por meio de sua notoriedade acadêmica, a proibição da substância.

 

O título de uma das respostas de Freud era: sobre o cocainismo e a cocainofobia (1887/1989).

Após parar de prescrever a cocaína aos pacientes, Freud seguiu usuário por pelo menos mais uma década. As críticas direcionadas à sua empreitada pré-psicanalítica foram respondidas até determinado momento. A partir de então, Freud teria pressa em se desvencilhar da polêmica, e, consequentemente, de sua imagem associada a cocaína. Tal postura lhe rendeu atitudes pouco nobres, uma delas, a expulsão do jovem Otto Gross, internado por uma hipotese psicose paranoica talvez decorrente do uso excessivo de cocaína. 

 

O último de escrito de Freud mencionando um uso cotidiano de cocaína é de 1900, 16 anos depois em que narra seu primeiro auto-experimento.

 

Já em 1911, Ferenczi escreve um importante artigo investigando a relação entre ciúmes e álcool, o caso disparador é o marido de sua governanta, no artigo, ele parte desse caso para abordar alguns outros pacientes tecendo considerações clínicas que podemos considerar relevantes até os dias de hoje, dentre elas Ferenczi fala de como não há ganho clínico em sugerir ou impor a abstinência da substância, ação que tem como efeito imediato o agravamento da neurose, amortecida pelo álcool.

Bleuler, diretor do sanatório no qual Otto Gross ficou internado e, consequentemente, superior de Carl Jung, além de profundo conhecedor da psiquiatria de sua época que contribuindo para nomenclaturas importantes até dias atuais, acusou Ferenczi de irresponsabilidade por deixar tão claro que as pessoas não são obrigadas a parar de beber. (Ferenczi, 1912/2008)  Bleuler era membro de uma associação abstêmia e sua acusação buscou constranger Ferenczi por meio de sua visão de mundo. Ferenczi resgata os passos de seu mestre e tece comentários acerca da sexualidade do antialcoólico, desnaturalizando uma postura fóbica sobre a substância.

 

Em 1920, é inaugurada a policlínica de Berlim, centro de formação de analistas e espaço aberto a pacientes de diferentes classes sociais. Dentre seus fundadores, 2 nomes viriam a se debruçar sobre o problema das adicções, Karl Abraham e Ernst Simmel escreveriam artigos a respeito do alcoolismo. Tal objeto de interesse não era mera coincidência com o fato de conduzirem uma clínica aberta.

Posteriormente, importantes contribuições ainda viriam de autores como Radó, Glover e Tausk. Dentre essas contribuições encontramos reflexões arrojadas sobre abstinência, diagnóstico e até mesmo a crítica ao uso do termo epidemia para o problema do alcoolismo.

 

Quando Freud já buscava uma saída da polêmica da cocaína, uma de suas últimas respostas a Erlenmeyer, seu perseguidor, foi classifica-lo como um cruzado quando se punha a falar da cocaína (Escohotado,1995/2010). A referência aos cavaleiros medievais não é despropositada. Erlenmeyer, assim como Bleuler não se detinha a discutir o uso de uma substância, mas de desacreditar seus interlocutores por meio de subterfúgios morais. Situando-os fora do campo de consideração e respeitabilidade, tentando minar o interlocutor da condição de semelhante. Erlenmeyer inaugurava, em seu ato contra Freud, o poder incutido às drogas que é, sem dúvida alguma, o mais destrutivo.

 

Agora falemos sobre o Brasil. Em 2017, quando ocorreu mais uma ofensiva truculenta e desastrosa na cracolândia, um coletivo que agrupa diferentes atores da região, dentre eles estudantes e profissionais de saúde, foi difamado nas redes sociais por meio da foto de uma confraternização, narrada com propósito de mudar seu contexto, afirmando que jovens de classe média se organizavam para promover acesso a bebidas alcóolicas para os usuários da cracolândia. A imagem e sua legenda sugestionavam uma série de elementos semióticos maliciosos que endossavam associações racistas.

 

Além dos casos que citamos aqui, poderíamos fazer uma lista relativamente extensa de constrangimentos e perseguições. O que há em comum nesses casos com mais de um século de distância é a estratégia de tentativa de constrangimento e coerção de quem se associou à uma substância sem aderir ao discurso de pânico e ao clamor público de horror e evitação. 

 

Neste campo, há uma associação subjacente, cuja a interpretação não é psicanalítica, mas é relevante. E essa associação diz: as pessoas são pobres e estão na rua porque são usuárias de crack. No percurso dessa associação acredita-se que quem não combate o uso de drogas dessas pessoas é conivente com sua pobreza. Questionar essa associação é uma ação radical, e esse é um traço que a psicanálise pode assumir sem grandes conflitos com seu modo de posicionamento ao longo da história. E esse questionamento não cabe só para aqueles que usam drogas ilícitas, mas também aos que não usam.

 

Há um paciente que diz “gostaria muito de sair da casa dos meus pais, mas ainda não encontrei alguém para me casar”, algo que numa análise pode ser respondido com “não entendi”, “por quê?” ou qualquer indagação com o mesmo tom. Não é diferente com a associação “fui parar na rua por causa das drogas”. É aqui que os enunciados se desdobram, o paciente, às vezes tenso ou irritado, começa a perfilar seus muros: “quando comecei a usar vendi minhas coisas para comprar drogas”, “como assim?”, “ué, é o que os drogados fazem”, “estranho, se eu gosto de usar drogas, porque ficaria sem recursos pra isso?”. Na medida que os muros se apresentam também se evidencia o precário rejunte que sustenta seus tijolos. E a cada estranhamento, a cada indagação é uma resposta que parece perder o sentido, o rejunte não é tão forte quanto parecia.

 

Essa intervenção não deixa de ter um caráter político, o interlocutor diz: há um muro, e nós dizemos: que muro? Isso vai até o momento em que o paciente pode perceber: há um fluxo, tem algo aqui que é imprescindível, uma necessidade, uma grandeza, algo importante em minha história, não sei muito o que fazer, mas flui, vai e volta, me acredito livre e, de repente, estou preso, mas não necessariamente parado, o fluxo me leva, é como uma correnteza, com esbarrões e curvas sinuosas. E aqui podemos considerar o trabalho iniciado, passamos da queixa, para a demanda. É com o fluxo que nós vamos, passando dos muros aos amores. Temos transferência.

 

Nesse ponto, a moral ainda existe, mas não é mais muro, é terreno, com sorte um terreno amplo, com diferentes dimensionamentos, tem perto e tem longe, de longe o problema parece fácil, mas a conduta parece errada. De perto é complicado, é estranho que esse possa parecer o certo, mas muitas vezes, foi o que deu. É então que a demanda começa a se converter em implicação e podemos começar a ver uma análise por excelência. Resgatar o ethos para dentro da moral, de modo a não dissociá-lo da ética.

 

Assim que há um lastro histórico do qual temos de cuidar, a psicanálise possui cicatrizes em relação a esse tema. Freud manejou com suas represálias e se defendeu enquanto recuava, mas se calou. É fato que foi um erro apontar a cocaína como panaceia, e sua resposta foi precisa ao criticar o lugar da droga como panpatógeno. No fim das contas, seu erro com a cocaína o constrangeu. Já nós não podemos nos dar ao luxo de nos constranger e simplesmente silenciar. É importante estarmos à altura de nosso tempo. 

 

Em sua obra, Lacan chega a mencionar a palavra “embaraço”, na sua diferença de sentido entre o espanhol e o português. De acordo com sua usual brincadeira com as polissemias e o inconsciente, algo embaraçoso é insígnia da angústia que denuncia um desejo, e pode ter o seu caráter profícuo, produtivo (1962 – 1963).

 

Na política, embaraçar o adversário é estratégia para desacreditá-lo, constrange-lo, aprisiona-lo no silêncio. Opera como a revelação de um suposto desejo do adversário que não deveria vir a público.

Um filho bastardo, para preservarmos o trânsito com a língua espanhola. Um desejo que foge aos bons olhos da moral e do campo simbólico, algo diferente daquilo que pertence ao apaziguamento dos ânimos, a acomodação de estar dentro da regra. Dado a sua condição marginal, é necessária uma função estatutária, analítica, de poder incluí-lo no jogo, dizer: isso está aqui. Assim como Freud fez com a sexualidade feminina, a sexualidade infantil, as intenções não reveladas nas ações altruístas. 

 

Erroneamente, mas é como a fantasia se constitui, aquele que não foi assumido por um pai é culpabilizado pelo próprio abandono e será uma figura promissora para agenciar medo e coerção, caso venha a acreditar na inerência de um potencial disruptivo em si. A questão é agenciá-lo dentre os semelhantes, reconhecer uma paternidade ainda que tardia. É público, existe porque quisemos que existisse, e continuamos querendo que esteja por aqui. Sim, eu continuo falando das drogas e da sua condição bastarda na história da psicanálise.

 

É comum na combinação entre uso de drogas e vida nas ruas que o usuário não se veja digno de ser cuidado. Às vezes o banho, a comida, a cama, e até mesmo uma escuta clínica, são assimilados como um esquema. Parte de um corre, assim como uma pedra. É benesse momentânea, pequena vantagem descolada para seguir sobrevivendo. É então que surge a importância de uma insígnia que marque desejo e cuidado como instituinte, não como brecha. É uma forma de dizer que ninguém é menos humano por usar drogas. Os usuários sabem como são vistos quando enxergamos um usuário, mas não sabem como são vistos quando os vemos como sujeitos, e este é um olhar que por vezes demora para ser assimilado. 

 

Nesse sentido, o mais potente que a psicanálise traz em relação às drogas é sua diferença de perspectiva. Sejamos francos, é necessário que o desejo se presentifique em nossa fala. As drogas não desaparecem só porque é impossível pensar uma sociedade sem drogas. As drogas estão aí porque queremos que elas estejam.

 

Algo curioso é como a relação de Freud com a cocaína serve para atribuir descrédito a psicanálise até hoje. A última publicação de ataque a psicanálise, lançada há poucos meses, é mais uma a apontar a psicanálise como o delírio de um cocainômano (Crews, 2017). Tal argumento não é desrespeitoso com a psicanálise. Mas chega a ser desrespeitoso com os demais usuários de cocaína. Se Freud criou a psicanálise graças a cocaína, o que acontece com os outros usuários que ao inalarem cocaína só conseguem falar ininterruptamente por horas enquanto bebem cerveja?

 

Destituir as drogas do lugar de objeto-tabu para que quem as use possa associar livremente é caminho privilegiado para que as explicações desautomatizem, para que a rua, a paulada, o perrengue não seja consequência da droga. O enquadro feito pelas forças de segurança não é a lei em ato, é a ausência da lei. A lei em ato é o respeito. É para isso que podemos usar a psicanálise no campo das drogas, resgatá-las ao campo de uma linguagem que não seja maldita e instaurar uma gentileza, uma consideração, um semelhante por trás de um objeto.

A polêmica de Freud com a cocaína é o seu filho bastardo, aquele que ficou esquecido depois que veio o matrimônio oficial gerando vossa majestade, a psicanálise. É o momento de determinados elementos dessa história saírem debaixo do tapete em nosso favor. Reconhecê-lo é reivindicá-lo das mãos de quem lucra com o medo como capital. Nós temos uma história com isso, já há um lugar de fala, é hora de avançar com certa autenticidade.

 

Pois aqui está, não é possível falar da violência nos contextos de uso de drogas abordando só a questão dos usuários e moradores de ruas. Temos de falar dos usuários e dos profissionais. Pois há uma pressão para que quem tem coragem de acolher sem julgar recue de sua posição, e essa pressão só aumenta. 

Me solicitaram uma fala que abordasse a questão das drogas e dos atendimentos aos usuários nos espaços públicos. Faço dela meu esforço de acolher aos que acolhem os usuários in loco. 

 

E isso só é possível por meio dessa ação de acolhida com estranhamento, de interrogação, de intervenção analítica. Ou seja, não aceitar os muros que sinalizam uma transgressão pautada em uma moral que não é nossa. Se as drogas são um muro para a política no seu modo mais antiquado, para nós jamais serão. O que sempre nos interessou e continua a nos interessar é o fluxo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

Abraham. K. (1908/2003) As relações psicológicas entre sexualidade e alcoolismo. In: A direção da cura nas toxicomanias, revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. APPOA, n 23.

 

Crews, F. Freud: the making of an illusion. Metropolitan Books, 2017.

 

Escohotado, A. (1995/2010) Aprendiendo de las drogas: usos, abusos, prejuicios y desafios. Barcelona: Editora Anagrama.

Ferenczi, S. (1911/2008) Le rôle de l’homossexualité dans la pathogénie de la paranoia. In: Sur les addictions. Paris: Ed. Payot & Rivages.

 

Ferenczi, S. (1912/2008) L’alcool et les nevroses. In: Sur les addictions. Paris: Ed. Payot & Rivages.

 

 

Freud, S. (1884/2004) Sobre a coca. In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. n. 26.

 

Freud, S. (1887/1989) Observações sobre o cocainismo e a cocainofobia. In: Cesarotto (Org.) Um affair freudiano: os escritos de Freud sobre a cocaína. São Paulo: Iluminuras

 

Glover, E. (1932/1997) On the aetiology of drug-addiction. In: Essential Papers on Addiction. Nova Iorque: New York University Press, 1997.

Lacan, J. (1962-1963) O seminário: livro 10, A angústia. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2005.

 

Lacan, J. (1969-1970/2008) O seminário: livro 17, o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar.

 

Radó, S. (1933) The psychoanalysis of pharmacathymia (Drug Addiction). In: Essential papers on addiction. Nova Iorque: New York University Press, 1997.

 

Simmel, E. (1929). From psychoanalytical treatment in a Sanatatorium. In: Essential papers on addiction. Nova Iorque: New York University Press, 1997.

 

Tausk, V. (1915/1991) On the Psychology of the Alcoholic Occupation Delirium. In: Roazen, P. (Ed.) Sexuality, war and schizophrenia. New Brunswick: Transaction Publishers.

Texto na íntegra:

http://newpsi.bvs-psi.org.br/eventos/Psicanalise_espacos_publicos.pdf

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