top of page

A PSICANÁLISE NOS ESPAÇOS PÚBLICOS

Christian Ingo Lenz Dunker

 

1. A Estrutura do Espaço Público: Esfera ou Garrafa de Klein?

 

A oposição entre espaço público e espaço privado nunca frequentou o universo de conceitos e experiências da psicanálise.  Como condição histórica da cisão característica dos processos de individualização que caracterizam a modernidade, a noção de espaço público ou privado facilmente traduziu-se, na chave da oposição entre a casa e rua, pelo local de trabalho do psicanalista: o consultório particular ou a instituição de saúde. Quando falamos em espaço público o conceito mesmo de espaço deveria ser melhor qualificado. Espaço aqui não é apenas território ou geografia, no sentido em que falamos em praça pública ou em propriedade particular. É certo que tanto na polis grega quanto na urbes romana,  o direito do homem livre ou cidadão encontrava na ágora ou na civitas sua expressão concreta, mas é preciso ter em conta que o espaço público é antes de tudo um espaço simbólico.

O que define um espaço, público ou privado, segundo a política é a natureza do interesse que o constitui e a extensão dos indivíduos que ele compreende. Assim como o que define o espaço para a psicanálise é a o desejo que o constitui e o sujeito que nele se realiza.

Lacan (1964), em um raro momento de discussão sobre a historicidade dos espaços dirá que a antiguidade se caracteriza pelo espaço em forma de esfera, o macro e o micro cosmos, ao passo que a modernidade cartesiana tem uma estrutura de Garrafa de Klein, ou seja, onde interior e exterior se comunicam em zonas de passagem e indeterminação.

“O pensamento cosmológico é fundado pela correspondência não biunívoca, mas estrutural, o envelopamento do microcosmo pelo macrocosmo; que este microcosmo vocês o chamem como quiserem: sujeito, alma, nous, que a este cosmo chamam como quiserem: realidade, universo, mas suponham que um envelopa o outro e o contenha, e que aquele que é contido se manifeste como sendo o resultado do cosmo, o que lhe corresponde membro a membro. (...) a partir do momento em que se rompe o paralelismo do sujeito com o cosmo que o envelopa e que fez do sujeito, psique, psicologia, microcosmo. É a partir do momento em que introduzimos aqui outra sutura [a ciência moderna] e que chamamos um ponto de amarração essencial que abre um buraco [ o cogito de Descartes], e graças ao qual a estrutura de garrafa de Klein então e apenas então, se instaura.”

Para este leitor de Koyré, o sujeito da psicanálise é o sujeito da ciência justamente por que este sujeito compreende uma inscrição em uma forma de linguagem: pública, compartilhável, capaz de responsabilidade ética e de estrutura racional.

Mas se a psicanálise é filha da modernidade, se sintomas neuróticos tem por condição o lento e gradual declínio da função social da imago paterna, fonte e origem da autoridade, porque Lacan teria buscado em Antígona um modelo ético para a psicanálise? Por que ele teria insistindo na figura trágica de Sócrates como efígie para o desejo atópico do psicanalista? Observe-se que isso acontece em um momento da obra onde ele teria se libertado da historicidade da experiência edípica, lida e reduzida à chave estrutural de organização da constituição do sujeito e de integração simbólica, função a um tempo humanizante, socializante e normalizante.

2. O Comum e o Coletivo

 

O problema crucial não é bem qual é a topologia do espaço público, mas como e por quem ele será ocupado. Maria Rita Kehl nos lembra que a separação entre público e privado quer dizer coisas muito diferentes quando se pensa do lado do rico ou do pobre. Para o rico isso significa civilização, discriminação entre interesses da pessoa e da coisa pública e redução do Estado. Para o pobre isso significa descaso e demissão do Estado, reinstauração reiterativa do estado de escravidão. Para os pobres a “rua já está dentro da casa [(...)e que] o público invade o privado não pelo excesso, mas pela falta”. Contra estas reencarnações do bovarismo ela retoma a imago do malandro como revalorização da amizade, da lealdade e do afeto. Com isso ela distancia-se da crítica legalista que vê o processo de segregação racial, de gênero e de classe apenas como uma luta pelo apossamento do Estado e pela consecução de mais e de melhores leis. Aparentemente a concentração do capital cultural, social e financeiro não será resolvida pela via da denúncia e do ressentimento, mas pela valorização do comum como experiência de compartilhamento. A lógica do condomínio não será desfeita apenas pela derrubada dos muros.

Diante dos sintomas sociais brasileiros, seja ele a iniquidade do pacto social, descrita por Helio Pelegrino, o bovarismo, o condomínio ou nossa incapacidade de restaurar o sonho, como argumentou Tales Ab´Saber, seria preciso propor uma ocupação que não fosse apenas a consecução de um suplemento de saber, ainda que crítico, mas uma ação direta que tocasse as três questões legadas por Lacan quando à implantação da psicanálise na cidade: no imaginário as identificações e seus efeitos de alienação em massa, no simbólico mito de  Édipo, com seus efeitos na relação entre a subjetivação da lei em autoridade ou em violência, e no real a segregação com seus paradigmas de invisibilidade, humilhação e morte.

Seria preciso pensar como segregação, pacto edípico e identificação concorrem para produzir da tanatopolítica brasileira na ocupação do espaço público.

Tradicionalmente pensamos que a pulsão de morte é um princípio de desunião, de repelência da unidade entre as pulsões e daí inferimos que a destrutividade seria a finalidade ética que seria compatível com isso. Traduzimos assim a tendência a integração das pulsões em uma homologia sociológica de formação de grupos, classes e massas. Desta maneira tematizamos certo paradoxo, às vezes sintetizado pela ambiguidade do conceito de sublimação, de que a manutenção da unidade e da identidade precisa criar inimigos internos e externos por meio dos quais a agressividade, a violência e a destrutividade se expressariam periodicamente. A noção de período é importante para entender os processos de fusão e desfusão da pulsão, desde a referência a Empédocles de Agrigento, este pensador e pesquisador que partia da divisão entre as quatro raízes, terra, fogo, água e ar e os dois princípios neikós e philia, de onde Freud pensou a oposição entre eros e thanatos. Gostaria de lembrar que para este pré-socrático, último dos médicos xamãs da Grécia antiga, neikós e philia inverteriam sua dominância em eras que se alternam. Quando se exaure e se completa a regra do igual atrai o igual, inverte-se a gramática cosmológica e inaugura-se em uma nova era, onde o igual repele o igual. Isso é congruente com a ideia de que a pulsão de morte torna-se particularmente destrutiva precisamente neste momento em que se realiza, com a máxima extensão, a identidade ou a diferença, entre as raízes.

 

Isso seria o mesmo que dizer que a constituição do comum deveria conter em si seu princípio de autodissolução, caso contrário os efeitos de agressividade e violência tendem a aparecer como destrutividade deslocada para a parte, para o elemento, para o traço daquilo que apenas insiste e repete a perserveração de si. Se há comum que cria unidades, mas há também o trabalho e o esforço comum para destruir a própria comunidade. O que diferenciaria cada um destas formas do comum?

Se levamos a sério esta mitologia das pulsões tudo dependerá do nível ao qual se aplica ou se considera o que é uma unidade. Por exemplo, pode-se argumentar que quando contamos com a unidade do indivíduo a agressividade conta como princípio de unificação, mas quando contamos com a unidade dos grupos e instituições, a violência conta como princípio de unidade. Talvez a destrutividade possa ser pensada justamente pela inversão da agressividade e da violência, não mais formativas do um, mas dissolutivas do todo. Vê se assim como o problema fundamental da pulsão de morte é o seu escopo de aplicação, o nível preciso no qual se dá o seu trabalho de negação, ou seja, a forma como, a cada vez, se conta por um, como quer Badiou (1988), ou como se constitui o plano de imanência no qual se considera um determinado devir, como quer Deleuze (1998).  Retomo aqui a observação precisa de Monique Ménard (2011) de que:

“De certo ponto de vista, a individualização se inscreve na morte de forma retardada: “reste ao organismo morrer à sua própria maneira”

Poderíamos generalizar este princípio para os diferentes tipos de individualização? Ou seja, os grupos morrem à sua própria maneira, as instituições morrem à sua própria maneira, as células morrem a sua própria maneira? Uma inspeção rápida ao capítulo XVI do Seminário  de Lacan sobre a Ética da Psicanálise, parece confirmar a aplicação a um tempo diferencial e transversal desta racionalidade.

Lembremos que este capítulo dedicado ao comentário sobre a pulsão de morte começa pela “imprudência que encoraja o indiferentismo em matéria de política", passa pelo comentário de Marx à Filosofia do Direito de Hegel e chega à própria reflexão hegeliana sobre os fundamentos do Estado.

 

Razão e necessidade, anarquismo, materialismo ou egoísmo são evocados, como preliminares para a colocação do problema do gozo. Portanto, a colocação de um nível preciso de uma experiência do comum, dado pelo problema da posse, da lei e do Estado,  precede a maneira como Lacan lerá a pulsão de morte:

“A rememoração, a historicização, é coextensiva ao funcionamento da pulsão no que se chama psiquismo humano. É igualmente lá que se grava, que entra no registro da experiência a destruição.”

Pode-se discutir em detalhe a pertinência em anexar o princípio vital ou contra-vital da repetição em Freud ao modo de uma repetição de linguagem, transportando assim propriedades de um universo marcado pela heteronomia para uma dimensão entranhada pela autonomia, como seria a linguagem, tanto como cálculo, como meio comum da experiência compartilhada. Chegamos assim em uma resposta provisória a nossa pergunta: o que diferencia a comum-philia da comum-neikós, é a identidade e o estado da disputa pela posse do próprio comum. É a sua negação ou apropriação individualizada para um nível mais baixo da escala das unidades que caracteriza a destrutividade.

No fundo esta deriva transbiológica do comum talvez acuse a impropriedade de colocar a questão nestes termos. Quando separamos, com Kant, a lei no sentido da natureza, e a lei nos sentido da livre determinação humana talvez estejamos nos deixando levar por uma partição relativamente estranha à psicanálise. Esta partição define que a ontologia é fixa, a epistemologia é variável. Tal partição define ainda que a ontologia da natureza nos impõe critérios de impessoalidade e determinação estranhos à substância humana. Ora a psicanálise talvez não se restrinja à inversão perspectivista deste princípio afirmando que a epistemologia é fixa, e a ontologia é variável. Quiçá, esta seja a tese mais forte de Lacan nesta matéria, ao afirmar que se o gozo é uma substância, ele não é nem natural nem linguístico.

 

A novidade lacaniana neste ponto é que o comum assim constituído pelo gozo é um comum não partilhável, não distribuível, não possível. Ou seja, exatamente como caracterizam Dardot e Laval (2017) em sua recente reconstrução do conceito de comum, este não precisa ser pensado como um traço positivo e determinável que caracteriza uma comunidade ou um indivíduo. O comum pode ser o que nos falta, o que ainda não possuímos, ou o que não pode ser possuído. Por isso o comum não é a vontade comum, nem os bens comuns, nem a comunidade de origem, mas um processo de instituição. O comum é uma forma de fazer, não um jeito de ser ou de ter. O comum tem menos que ver como necessário e com o possível do que com o contingente, como categoria ligada ao futuro não antecipado.

Por isso existem formas de reinvindicação que não precisam saber exatamente o que querem, e outras formas de vida que não precisam saber exatamente o que são.

 

3. O Público e o Político

Quero crer que a reticência dos psicanalistas em matéria de política tem menos relação com o temor de partidarizar a clínica e comprometer a neutralidade benevolente dos psicanalistas, identificando traços comprometedores e mais com o fato de que participar do espaço público implica e compromete quem o faz com o campo político. Não há público sem político. Isso ameaça a unidade da psicanálise, pois esta dificilmente poderia se manter uma quando exposta aos compromissos de a-neutralidade do espaço público. Isso explicaria, adicionalmente porque tanto Freud quanto Lacan se preocuparam tão intensamente em qualificar e localizar a psicanálise no campo da ciência. Uma vez que ela não é arte nem religião, uma vez que não é política nem parte do Estado, e seus dispositivos médicos, a única posição legível de inscrição no espaço público teria que ser a ciência. Ocorre que entre o texto de 1917 de Freud, sobre a psicanálise nas universidades e o texto de 1966 de Lacan sobre Ciência e Verdade detectam-se mutações do lugar social da ciência. Uma mutação que afetou seu lugar de arbitragem ou eventualmente de tradução formal dos interesses que lhe conferia o atributo de autoridade. Este declínio da função social da imago científica afeta sua caracterização como discurso e como servidão em relação à técnica. É por isso também que muitos psicanalistas se evadem da discussão com a ciência na mesma medida em que se evadem da discussão sobre políticas públicas.

Portanto, é crucial saber qual política para qual psicanálise. E neste sentido há duas proposições importantes (Mouffe, 2015). A política pode ser considerada como campo, uma campo que se fecha ou que se alarga, um campo inclusivo ou segregativo, um campo cujo vetor de expansão histórico pode ser lido por meio do conceito de democracia. Participar do espaço público é reconhecer a política (the political) e mais especificamente reconhecer a democracia, esta antiga ideia pré-moderna, como sua regra de formação. É reconhecer que à regra da associação livre corresponde uma mimese social da livre associação.

Mas em outro sentido a política não é só um campo, o campo do espaço público da diferença entre iguais, mas a política (the politics) é o conjunto desordenado de estratégias locais de transformação.

 

Este conjunto formados por classes de interesses e interesses de classe, por gêneros de sofrimentos e por sofrimentos de gênero, por raças de mestres e mestre de raças tem duas regras de constituição. Por um lado há a luta por reconhecimento institucional e apossamento do Estado, tal como foi pensada tanto pela tradição liberal de implantação de indivíduos, de Locke ao neoliberalismo, quanto pela tradição crítica revolucionária de Marx a Althusser. Por outro lado, podemos falar de estratégias políticas cujo fundamento não são as instituições, mas as comunidades, como queria Max Weber, os grupos organizados como queria Gramsci. Os discursos, como matriz de leitura da hegemonia cultural discursiva podem ser contrapostos aos discursos como matriz de circulação do poder e das mercadorias.

Ora, a psicanálise se sai muito melhor enquanto discurso de sustentação da abertura do campo político, do que como prática de cura que ultrapassa a “politics” da saúde.  Ela se torna uma experiência que não cessa de não se inscrever, seja no campo da política, quanto como estratégia política. Isso ocorre porque ela se identifica como o resto, o rebotalho social, com aquilo que não tem nome e com aquilo que é excluído em sua voz ou em seu corpo. Isso não significa apenas uma afinidade espontânea com a crítica da moral sexual civilizada, considerada como fator indutor de conflitos e coadjuvante na etiologia das neuroses. Isso ocorre por razões estruturais que tornam o desejo do analista dependente deste trabalho de exteriorização das instituições e das comunidades que lhe deram origem.

Que tipo de política, para qual sujeito, em que regime de vínculo social e afeto hegemônico (desamparo), com qual telos ou finalidade são as questões que Lacan enfrentou sistematicamente em seu texto sobre “A Direção da Cura e os Princípios de seu Poder” de 1958.  É importante notar que o texto não chama “Orientação do Tratamento e os Princípios de sua Autoridade”, como bem poderia ter se chamado. Isso ocorre porque não estamos interessados em como produzir ou manter a autoridade que se problematiza na transferência, mas porque se o princípio do poder é a palavra, a palavra é também algo que subverte a fronteira entre público e privado em litoral, por meio do qual se constitui o comum.

Freud dizia que a anatomia é o destino. E nisso ele parodiava Napoleão que dizia que a “geografia é o destino”. Ora, Napoleão dizia isso no contexto da ligação entre a arte da guerra e a política, e por isso o tratado clássico de Clausewitz sobre a guerra moderna começa com um amplo desenvolvimento sobre as condições do terreno na qual a guerra e a batalha se dá. Lembremos que a noção de destino (Schickshale) aparece também na ideia de destinos da pulsão (recalcamento, inversão ao contrário, retorno a própria pessoa e sublimação. Portanto, a geografia-anatomia é destino, não como fatalidade e determinação biológica, mas como lugar do conflito e campo de negações.

A psicanálise no espaço público nos leva assim a uma posição dupla, de subversão do espaço concêntrico de organização cosmológica que dividiria clara e distintamente o lado de dentro e o lado de fora da Garrafa de Klein, no espaço público e o espaço privado. Para a psicanálise esta não é a geografia e esta não é a anatomia do conflito. Por outo lado a posição de psicanálise no espaço público envolve a consideração dos bloqueios da política, os fracassos de constituição de seu campo como campo onde o poder está na palavra. Tais fracassos são constantes, redução da política à expansão das comunidades (cujo epicentro é a família), transformação da política no campo infinito do diálogo e da negociação das razões instituídas, mutação da política em administração de recursos e ocupação do Estado. Ou seja, a psicanálise no espaço público examina a criação de condições de impossibilidade, como forma de adiar ou evitar o encontro com o antagonismo social e como maus-tratos do conflito, cuja expressão é o sofrimento. Logo a cura não pode ser, em hipótese alguma a pacificação harmonizante ou adaptativa dos indivíduos, o conformismo normativo ou a resignação como mudança de lugar e função para o impossível.

Isso terá por consequência a crítica da normatividade que a psicanálise absorveu ou defletiu ao longo de seus mais de cem anos de existência. Assim como na experiência analítica de cada um não lhe cabe indicar o modelo ou padrão de conduta ou de felicidade, mas reconhecer a potência da indeterminação, decorrente da solução de sintomas, da dissolução de transferências e resistências, que tem por efeito colateral a potência de produção de novas normatividades. A realização da política como emancipação da norma não precisa de uma política positiva. Daí que a noção de cura, como noção política, tenha que se diferida da ideia de tratamento como conceito ligado a uma estratégia.

 

Charles Darwin (1854) dizia que o homem não pode criar nem impedir variações, mas apenas tentar selecionar, preservar ou acumular as que vão acontecendo. Assim também a psicanálise no espaço público tem por horizonte a ideia de não suprimir variações, ou seja, a diferença como razão constitutiva do campo, mas apenas organizar séries transformativas, de si e do mundo.  

4. Público e Universalidade

Do ponto de vista da estratégia só é possível falar a partir de particulares, contudo argumento aqui que, assim como no que toca ao campo a política, a psicanálise mantém uma afinidade de origem com a democracia, no que toca à estratégia, a psicanálise tem uma afinidade com as políticas universalistas. Para Badiou (1988), as políticas universalistas admitem, em algum medida, um conceito forte de verdade:

“A verdade é diagonal em relação a todos os subconjuntos comunitários, ela não comporta nenhuma identidade e não constitui nenhuma identidade. Ela é oferecida a todos e destinada a cada um, sem que uma condição de pertencimento possa limitar esta oferta ou essa destinação.”

Assim como há um real em jogo na democracia, há uma verdade em disputa na universalidade. Estes seriam os dois crivos para pensar uma teoria geral da transformação em psicanálise, e neste ponto a política não é um campo ao qual podemos aportar coisas, mas uma experiência da qual podemos importar elementos para a prática. Mais além de advogar a transformação como um salto no vazio, sua eventual contribuição para o gerenciamento da crise de representatividade, ou para a crítica da biopolítica, a participação da psicanálise no espaço público tem sua dimensão em lutas específicas. Por exemplo, contra o estado terapêutico, descrito por Frank Furedi (2004), e a cultura do amparo é preciso lembrar que uma política que quer nos proteger do Real nos leva de volta ao pior.

O problema central acerca da presença da psicanálise nos espaços públicos remonta à distinção entre o espaço público e o interesse público, lembrando aqui que a noção de interesse é uma noção, ainda que menor, da metapsicologia psicanalítica. Interesse é a energia psíquica das pulsões de auto-conservação, assim como a libido é a energia das pulsões sexuais (Freud, 1917).  Isso explica a garrafa brasileira de Klein: nem tudo que pertence ao espaço público pertence ao Estado, assim como nem tudo que pertence ao interesse das empresas e das famílias pertence ao espaço privado. Há coisas, bens e interesses que pertencem ao espaço público e que são do escopo privado (desde que o privado se desidentifique do interesse das famílias), assim como há bens e interesses que pertencem ao espaço privado e que são do interesse público. Escolas, centos culturais, patrimônios comuns e quejandos estão no centro desta encruzilhada que subverte a equação: público = estatal, logo, privado= empresarial. Há um resto nesta equação. Um resto psicanalítico. Um resto que implicará pensar outra função e outra circulação possível para o dinheiro, mais além da correspondência entre público=gratuito e privado=pago. Esta é uma tarefa que a psicanálise traz junto com sua nova inscrição no espaço e no interesse público. Escolas privadas tem um interesse público. Museus privados tem um interesse público, fundações públicas tem interesses privados. É esta subversão desta oposição simples que a psicanálise trará ao espaço público, assim como seu entendimento artesanal sobre a circulação do dinheiro.

É neste ponto que a política, como ocupação do espaço público, ultrapassa e contém as considerações sobre a política da psicanálise. É neste ponto que a politização radical da ética, como defende Zizek (2010), envolve uma tradução contingente dos princípios associativos formados e formulados pelo laço social entre psicanalistas. Ou seja, a história das críticas, das tentativas, das reformulações e ilusões, institucionalistas e comunitaristas, realizadas pelos psicanalistas há mais de um século é uma história que nos lega alguma experiência em um tipo de política que não perdeu sua zona de contato com a ética. Precisamos de pequenos modelos e experiências de referência, mas com a condição de que a ocupação do espaço público não seja apenas a generalização ampliada de tais experiências. Isso pode ser extraído da forma como psicanalistas pensam seu próprio movimento social, como institucionalização e discurso, o que faria a prova real da “hipótese psicanalítica”, análogo teórico do que Badiou (1988) chamou de “hipótese comunista”.

Ora, se a hipótese psicanalítica é uma hipótese de universalidade, seu conceito de universalidade parece ultrapassar a mera dicotomia entre direitos universais e abstratos, que se prestam apenas para operações de mímesis invertida, entre lei e regra, entre regra e caso, para naturalizar segregações de exclusões. A noção psicanalítica de exceção, a lógica do não-todo e a ideia de um universal que compreenda uma existência que o nega, pode servir para uma crítica psicanalítica da política tal como a conhecemos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BADIOU, A. (1988) Para uma nova teoria do sujeito. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

DAVID-MENARD, M. (2011) Éloge des Hasards dans da vie Sexuelle. Hermann: Paris.

DARDOT, P. LAVAL, C. (2017) Comum. São Paulo: Boitempo.

DARWIN, C. (1854) Origem das Espécies. São Paulo: Ubu. 

DELEUZE,G. 1998) Mil Platôs. Campinas: Editora 34.

FUREDI, F. (2004) Therapy Culture. London: Routledge.

Freud, S. (1917)  A Pulsão e suas Vicissitudes In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol.x,. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 

KEHL, M.R. (2018) Bovarismo Brasileiro. São Paulo: Boitempo 

LACAN, J. (1959-1960) O Seminário Livro VII A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. 

_______ .(1964-1965) O Seminário Livro XII: Problemas Cruciais para a Psicanálise. Recife: Centro de Estudos Freudianos, pág. 53-55. 

_______ (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. Escritos. 591-652. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988.

MOUFFE, C. (2015) Sobre o político. São Paulo: Martins Fontes.

ZIZEK, S. (2010) Vivendo no Fim dos Tempos. São Paulo: Boitempo.

Texto na íntegra:

http://newpsi.bvs-psi.org.br/eventos/Psicanalise_espacos_publicos.pdf

latesfip - laboratório de teoria social, filosofia e psicanálise - universidade de são paulo

bottom of page